Caleidoscópio


Era uma garota que possuía mais pensamentos do que as palavras conhecidas pudessem expressar. Observava muito e falava pouco.

O tempo foi calando a sua voz, o que a tornou uma pessoa muito audível; característica que seus amigos adoravam, pois podiam falar horas sobre si próprios de modo que de tanto falarem sozinhos, encontravam por si mesmos a solução de seus próprios problemas.

Mas nunca lembraram de perguntar como a garota se sentia. E ela foi sentindo cada vez mais para si. Acumulando turbilhões de sentimentos que a fez mudar toda sua forma de pensar e de enxergar a vida. E isso a calou ainda mais.

Certo dia, alguém se deu conta de que a garota não falava de si própria. E vieram as perguntas. E mesmo ela ficou surpresa ao perceber que não possuía mais respostas sobre si. Aqueles sentimentos acumulados gritando dentro de si estavam tão apressados para sair e se fazer notar que acabaram congestionando a saída, seja lá de onde eles se acumulavam.

Com o tempo acostumou-se a conviver também com isso.

E a solidão que fazia parte do seu mundo tão vívido ganhava cores na insônia imaginativa de suas madrugadas pensantes. Escrevia, para não falar sozinha. Mirava-se num espelho de palavras amargas em versos escritos numa espécie de emese.

Sua voz distante ressoava no cérebro pensante como quem grita diante de um abismo. E quando lia o reflexo de seu desvario, o abismo gritava de volta... Um eco alucinante de si mesma.

Uma sala de espelhos distorcidos: essa era sua mente;  era assim que se enxergava. Mas era só um reflexo imaginário não condizente com sua figura real. Ela sabia, mas ainda não conseguia enxergar de outra forma. Não ainda.

Sinais

Só tenho isso pra dizer, por hoje.


Estou ouvindo um galo cantar


Estou ouvindo um galo cantar, e recordo.
Há quanto tempo não escuto esse som?
Som de noites que eu gostaria muito de esquecer.
De ficar acordada em um tempo onde só havia o silencio e a espera.
Madrugadas a fio, sentada na janela de um quarto no primeiro andar... aquela casa numa cidadezinha do interior, onde só o apito dos guardas cortava a noite.
Eu escrevia, depois chorava. E olhava as estrelas, sem achar que haveria futuro, desejando fugir pra bem longe dali.
Lembro de sair correndo, certo dia.
Eu fugia, às vezes; ninguém nunca notou que eu saia de casa, à noite. Porém não havia ninguém na rua. E eu só queria conversar.
Houve coisas que sequer posso escrever.
Mas a vida mudou e eu já não choro mais.
Foi esse galo que me fez tocar na cicatriz daquela enorme ferida que já sangrou tanto e às vezes dói. Todavia  a dor é só uma memória arraigada nessa cicatriz.
Compreendo que mesmo sem ouvir o som, por vezes ainda escuto este mesmo galo (ou seria aquele?) cantar.