Chuva


Era o último dia e chovia.
Como se todos os anos, numa vã tentativa de protesto, os deuses decidissem lavar toda a imundícia daquele festejo insensato.
Mas eu também me encontrava em meio aquela louca alegria. E estando presente, constatava que a chuva funcionava tão somente como uma forma de enxaguar todo resto de tristeza que poderia ainda estar impregnado na alma das pessoas. Chover era um alívio.
As pessoas, primeiramente procuravam abrigo. Eu inclusive. Mas quando os locais acabavam por se tornar extremamente lotados, algumas tomavam coragem para encarar o frio e a impetuosidade do vento, e acabavam por descobrir que aquilo era especial.
Dançar. Na chuva.
E o sorriso ia se abrindo nos rostos, como se o mundo pudesse acabar exatamente naquele instante e nada mais os preocuparia. No momento eram só elas e a chuva. E a música que não parou um segundo sequer.
E aqueles que ainda estavam abrigados, motivados pela atitude dos primeiros que não encontraram lugar, começavam também a sorrir, e muitos saíram impulsionados por uma espécie de transe coletivo que tomava conta do lugar. Sorrisos chuvosos e música uniam aquelas pessoas desconhecidas.
Mas eu continuei ali. Conhecendo a capacidade que a música tem de hipnotizar as pessoas, decidi não me contagiar e fechei os olhos. Quando abri, ele sorria pra mim. Disse qualquer coisa e eu sem saber porquê, sorri.  Então me dei conta de que havia aberto um portal. Arrependida, me virei e fingi curtir a musica, fechando novamente os olhos.
E de repente o mundo era somente eu ali. Mesmo que todas as outras pessoas estivessem ao meu lado e eu me sentisse muito parte delas. O momento era eu; era meu. Meu, da música e daquela sensação única de estar num lugar onde todos compartilhavam o mesmo sentimento que era tão particular de cada um. A estranheza era mesmo essa: a singularidade coletiva que pairava no ar, transformando a atmosfera num espectro de alegria e força.
Quando percebi já estava na chuva, sorrindo. Dançando de olhos fechados. Envolta no transe do qual havia fugido minutos antes. 

True History


Desceu as escadas com o coração em prantos. Entretanto seu rosto espelhava serenidade. Até esboçou um sorriso, meio sem graça; queria ser dona da sua própria situação.
Sentiu-se forte, como nunca havia sentido. As coisas que disseram já não eram reais. Havia a convicção de quem estava fazendo algo que mudaria totalmente sua vida. Nunca mais deixaria que falassem dela. E não permitiria sequer que ousassem brincar com seus sentimentos outra vez.
Tinha arrumado os cabelos, e usado aquela roupa que a deixava mais mulher. Olhara uma última vez as paredes e o teto deste que fora seu quarto durante tantos anos. Quantas lembranças!
De ficar madrugadas varando na janela, à espera que algo inusitado acontecesse naquela viela. Mas somente os guardas noturnos apareciam e nunca sorriam, nem diziam boa noite. Naquela época ainda não havia conversas incessantes pela internet.
E olhou também aquela casa tão grande, e o espelho da sala, onde se achou muito sensual, e decidida. Seu interior sangrava, mas dali por diante decidiria seu próprio caminho, faria suas próprias escolhas. E a primeira de muitas que sucederiam, foi não seguir o que lhe ensinaram ser o certo durante sua pouca vida. Naquele exato instante decidiu questionar a sua existência.
Passou a mão pelos móveis, olhando cada detalhe daquele lugar, cada cômodo. E desceu as escadas. Entrou no carro. Tudo o que tinha estava no porta-malas. Porém nem malas havia, estava tudo jogado dentro de um saco, bagunçado, da mesma forma que se sentia naquele momento: Bagunçada como algo que não valia nada e estava jogado de qualquer forma, semelhante àquelas roupas no saco.
Tinha que prosseguir. Não chorou. Sorriu.
No primeiro movimento do carro, sentiu o coração gelar. Ia devagar pela estrada, enquanto um flashback dançava diante de seus olhos. Parecia um filme, um clipe, todavia era sua vida.
Encontrou o moço a quem tanto amou, na saída da cidade. Parou o carro, tocou em sua mão e disse adeus.  Ele já não a amava, ela sabia e mesmo assim deixou seu coração nas mãos daquele moço. E por todo o caminho até chegar a seu novo destino, respirou como se tudo aquilo fosse um sonho triste que aconteceu. E ali fez duas promessas.
Não deixaria, nunca mais, alguém lhe pisar. Não voltaria àquele lugar. 
E as cumpriu.